No fim da semana passada, usando a minha rota de escape pelo primeiro quarteirão da Rua Martiniano de Carvalho, deparei com a cena acima: a demolição de uma casinha simpática, no número 189, quase na esquina com a Rua Monsenhor Passaláqua, onde funcionava a Igreja Cristã de Graças Celestiais. Felizmente, o sinal estava fechado e consegui a tempo sacar meu celular para registrar os últimos suspiros da casa. Ela ainda está visível no Google Maps, e na imagem reproduzida abaixo, logo antes da paisagem quase lunar de hoje de manhã. No dia seguinte, tinha sobrado apenas o portão, e o que havia no terreno ao lado, de número 187, que antes tinha um alto muro na frente, também tinha vindo abaixo. Anteontem voltei para fotografar o portão, imaginando que talvez fosse ser conservado, mas ele já não mais estava lá. Os dois terrenos já estão sendo terraplanados. Não sei se vem por aí um novo templo ou um espigão. As duas alternativas são ruins. Sim, mesmo o eventual templo, pois tende a ser maior, e um polo gerador de tráfego. É, entretanto, uma alternativa menos pior do que mais um edifício com dezenas de apartamentos.
Os dois primeiros quarteirões da Rua Martiniano de Carvalho, entre as ruas Humaitá e Pedroso, têm, além da Província Carmelitana de Santo Elias, que ocupa boa parte do lado par do primeiro quarteirão, vários edifícios baixos, construídos nas décadas de 1940 e 1950, e casas construídas ainda antes. Um dos exemplos está na foto abaixo, aparentemente no número 123 (o último algarismo caiu, mas deixou marcas que podem ser de um “3″).
No lado ímpar do segundo quarteirão destaca-se a Vila Itororó, conjunto arquitetônico erguido nos anos 1920, possivelmente o imóvel mais famoso da rua e de todo o bairro, lugar onde foi instalada a primeira piscina da cidade. Há ainda uma vila, na altura do número 71, onde minha sogra, Maria Elisa, passou boa parte de sua infância e adolescência. A vila resiste até hoje, mas com um portão provavelmente colocado nas décadas de 1990 ou 2000, como se vê na foto abaixo.
Cruzando a Rua Pedroso, no primeiro quarteirão ainda resistem algumas casas antigas, convivendo com dois prédios mais recentes, provavelmente dos anos 1970, um de cada lado da rua. A partir da esquina com a Rua Santa Madalena, e seguindo até o fim da via, na Praça Amadeu Amaral, as características da Martiniano de Carvalho se modificam, e os hospitais Paulistano e São José passam a dividir a paisagem com prédios já construídos entre a década de 1960 e o início dos anos 1980. A partir de então, o bairro passou a ser esquecido para novos empreendimentos imobiliários.
Nos últimos anos essa tendência tem sido radicalmente revertida. O enorme terreno que abrigou o Palácio Pio XII, sede da Cúria Metropolitana até os anos 1970 e demolido no final daquela década, desde meados da década passada tem três torres enormes de apartamentos, cujo condomínio não preservou a memória do ocupante original do terreno nem no nome, hoje um pouco criativo (e geograficamente errado) “Vereda Paraíso”. Apesar de cada um dos prédios ter frente para uma das ruas que ladeiam o terreno — Martiniano de Carvalho, Artur Prado e Pio XII —, a entrada social do condomínio é na Artur Prado, ficando a Martiniano como entrada de serviço e saída da garagem, depejando dezenas de veículos ali todas as manhãs.
Mais à frente, quase na esquina com a Rua João Julião, um espigão recente aparenta ter mais de uma dezena de apartamentos em cada um de seus mais de vinte andares. Um pouco abaixo do Hospital Paulistano, do outro lado da rua, está sendo construído um prédio também com dezenas de apartamentos, mas que terá entrada pela Rua Artur Prado, paralela à Martiniano de Carvalho. Um novo prédio de escritórios está quase pronto pouco abaixo, seguindo a tendência ditada pelo complexo da Telefónica, na esquina da Martiniano com a Rua Capitão-Mor Roque Barreto.
Uma esquina pode estar prestes a representar bem as mudanças que, pelo visto, estão apenas começando na Rua Martiniano de Carvalho. Na esquina com a Rua Santa Madalena, do lado esquerdo de quem sobe havia um estacionamento, transferido há poucas semanas para o terreno ao lado, na Santa Madalena. O muro permaneceu, e os portões foram fechados com tijolos. O terreno é grande o bastante para abrigar um novo prédio. Esse último quarteirão da Santa Madalena costuma ter trânsito problemático nos horários de pico, por causa do acesso à Avenida Vinte e Três de Maio e ao Viaduto Pedroso. Um novo prédio justamente ali só fará piorar essa situação.
Do outro lado dessa esquina existiam três casas antigas até 2004, ano em que foram demolidas para dar lugar a um posto de gasolina. Meu pai tinha ficado sabendo dessa demolição à época e pediu que eu fosse lá fotografar, pois eu trabalhava não muito longe dali. Assim, é possível fazer um antes e depois dessa esquina, com a foto batida em 17 de agosto de 2004 em cima e a de 27 de maio de 2011 abaixo.
Como se pode perceber, o “ataque imobiliário” não se restringe à Rua Martiniano de Carvalho. Uma casa dos anos 1950 foi demolida no ano passado na Rua Pio XII e uma casa noturna de “namoradas instantâneas” foi demolida há dois meses na Rua Pedroso, ao lado do Pão de Açúcar, ambas para dar lugar a lindos estacionamentos. Além disso, segue em estágio avançado a construção de outro prédio na Artur Prado, pouco acima da Santa Madalena, e um prédio de apartamentos será erguido na confluência das ruas Monsenhor Passaláqua e Sebastião Soares de Faria, em frente ao início da Rua Artur Prado, a um quarteirão de onde estão demolindo a antiga Igreja Cristã de Graças Celestiais. Este último empreendimento tomou o lugar de um estacionamento. Uma casa bem antiga na Artur Prado, que há anos está bem escorada para não cair, segue resistindo bravamente, só não se sabe por quanto tempo. Quando ela cair — porque não é questão de se vai cair; ela vai cair eventualmente —, certamente tentarão encaixar um novo prédio por ali, quem sabe fagocitando também a casa vizinha, mais recente, que abriga um cabeleireiro e um consultório de dentista.
Assim, a cara da Rua Martiniano de Carvalho e adjacências segue mudando sua cara, para pior, sem dúvida. Seus quarteirões que eram pacatos vão ganhar movimento; os que já não mais eram pacatos ganharão mais movimento. E a qualidade de vida dos que lá já moravam e dos que lá virão morar desce ladeira abaixo, junto com a memória do bairro, que nunca foi lá muito bem conservada, como mostra o exemplo da Vila Itororó, em foto abaixo. Falam que ela será reformada e dará lugar a um centro cultural, mas ela e seus atuais moradores seguem sem destino definido. Não será nenhuma surpresa se daqui a alguns anos houver um grande condomínio no lugar. E este, claro, não terá “Vila Itororó” no nome.
Casinha simpática? :P
Vamos ver o que vão construir ali… mas convenhamos que o posto de gasolina ficou muito melhor na outra foto do que aquela coisa que estava lá :)
Mesmo caindo aos pedaços, as casinhas era muito mais bonitas que o posto reluzente!
Alexandre, bem a carater com o que eu conversava hoje com um amigo sobre o estádio das Laranjeiras, que me disse estar tombado pelo Patrimônio Histórico. Falei para ele que a mansão Matarazzo tinha sido tombada pela ex-prefeita Luiza Erundina e que os proprietários da noite para o dia demoliram a mansão.
Acho que foi assim.
Mas como preservar as antigas construções? Como mantê-las sem ajuda financeira? O que faz um humilde proprietário quando recebe uma proposta para vender e botar abaixo uma casa dos anos 20, 30 ou 40? Vende na hora e nem saudade vai sentir.
Infelizmente acho que é assim. Não entendo muito do assunto , mas fique a vontade para comentar se a realidade for outra.
Gostei da foto da vila entre dois prédios e da diferença do antes e depois do posto de gasolina.
abs
Nesse caso, se for pras casas ficarem daquele jeito, eu prefiro o posto…
O problema, Gilberto, é que as regras do tombamento são rígidas demais. Amarram mesmo os proprietários, e não há como culpá-los por venderem as casas, mesmo quando sabem que será para demolição. Quem quer ter seu imóvel tombado? Ninguém, pois é garantia de dor de cabeça. O pior é saber que muitas casas caíram justamente por medo de seus proprietários de que elas viessem a ser tombadas. Não fosse por isso, ainda estariam por aí. As regras do tombamento têm de ser mudadas, senão a situação seguirá sendo sempre a mesma.
De qualquer maneira, não podemos ignorar que existem aqueles que não têm ameaça de tombamento e pedem uma fortuna para vender, sabendo que apenas uma construtora pode pagar por isso. Mesmo os que pouco ligam para a memória da cidade têm de se lembrar que, se cai uma casa para se colocar cem apartamentos no lugar a qualidade de vida de todo um bairro vai cair.
E não é só a expansão imobiliária que destroi casas. Na ponte cidade jardim destruiram mansões para ter mais uma alça de acesso…
Parece-me um problema diferente, João. Ao menos essas casas não foram substituídas por espigões acrescentando inúmeros automóveis às vias da região. Por outro lado, é claro que o acesso perturbará mais os vizinhos que restaram e possivelmente os valores pagos pela desapropriação não cobriram o que as casas valiam.
Será mesmo um “problema diferente”? O zoneamento urbano em SP em que bairros dormitórios, ricos e pobres, cercam áreas comerciais densas implica em reforçar um modelo de mobilidade urbana falido. Eu sou grande apreciador da densidade, gosto de fazer tudo a pé perto de casa.
Mas ao estimular uma cidade de grandes distâncias com enormes condomínios residenciais com 4 vagas por apartamento, a cidade acaba se sufocando. Mais vias para automóveis é um reforço a essa política urbana que você e eu destestamos. ;)
Sim, nós dois detestamos, mas, apesar disso, elas acabam sendo muitas vezes necessárias — não sei se é o caso dessa especificamente —, justamente para tentar compensar os erros das últimas décadas, especialmente a falta de investimento em transporte coletivo de massa. É claro que novas estações de metrô seriam muito melhores que um novo acesso, mas ainda há muito o que se mudar na mentalidade urbana paulistana. Temos de aceitar o fato de que existem milhões de veículos em circulação na capital e eles não vão sumir de uma hora para a outra. Para tirarmos esses veículos da rua é necessário melhorar a qualidade do transporte coletivo, incentivar transportes alternativos e promover a recuperação dos bairros degradados no centro. Temos visto progressos tímidos nesses quesitos em curto prazo. Mas é também preciso mudar a cultura, pois houve melhorias muito grandes no ônibus e nos trens metropolitanos nas últimas duas décadas, e ainda assim a frota de carros não para de crescer. Conheço gente que encara dessa maneira: “Eu até pegaria o metrô [notar o futuro do pretérito], mas não entro na CPTM de jeito nenhum.” Ou seja, não quer nem saber dos progressos. Quer saber da suposta comodidade de pegar trânsito todos os dias e pagar uma pequena fortuna como mensalidade em estacionamentos. Por mais tacanha que seja essa mentalidade, não se pode simplesmente excluir essa população de qualquer benfeitoria.
Olá Alexandre. Sou um morador recente do bairro e “descobri” nos últimos dias a rua Martiniano. Minha namorada já havia falado a respeito dessa vila onde disseste que sua sogra mora.
A vila parece encantadora. Sabe se há algo à venda nela?
Há algum tipo de restrição a se visitar a Vila Itororó?
Grato pela informação.
Olá, Ivan. Seja bem-vindo ao Bixiga. :) Passei na frente da vila hoje, e não havia nenhuma placa de venda ou mesmo aluguel no portão. O negócio ali seria fuçar, tentar ver se alguém sabe de alguma coisa (minha sogra, na verdade, morou ali até os anos 1970 apenas). Sobre a Vila Itororó, não sei te dizer. Quando ainda havia muita gente morando ali, era mais ou menos como visitar qualquer condomínio: você precisaria conhecer alguém. Parece que as famílias já se mudaram todas ou quase todas, então não sei como está a coisa. Não dá a impressão que esteja fechado, mas entrar lá pode ser considerado invasão. Se forem mesmo fazer tudo o que já imaginaram fazer lá, talvez daqui a alguns meses/anos esteja aberta a visitação. Mas depende de tanta coisa…
Obrigado pelas informações, Alexandre.
Muito bacana o seu Blog, especialmente para quem se interessa por transformações urbanas.
Alexandre: a Maria Elisa que você citou como antiga moradora da simpática vila da martiniano de Carvalho e a filha da dona Anita e do seu jacob? Se for, o bebe da foto e neto dela? Fomos amigos de infância.
Olá Alexandre,
Eu moro na Pedroso e vejo da janela a Vila Itororó.
Eu soube que a já prefeitura desapropriou tudo ali e retirou os moradores (o que foi bom, era perigosa a frequência…) e ali será instalado um centro cultural de cinema.
Inclusive, já tem um administrador lá (cabide de emprego do kassab), pois só tem mato, sujeira e para que um administrador? para tomar conta do mato…rs!
Também soube que todo aquele quarteirão foi desapropriado e que a loja de veiculos é uma invasão(?!) e será retirada também, dando lugar ao tal centro cultural.
Bom, acho que vai ficar muito legal esta área cultural e terá área verde, o que será ótimo para o bairro. Você não acha? Abraços! Cliwer
Olá, Cliwer. Esse projeto do centro cultural já tem sido divulgado há pelo menos uns seis anos, sem sair do papel. Não sei da questão sobre a concessionária e outros imóveis. Há alguns sobrados na Martiniano perto da Monsenhor Passaláqua e uns prédios mais próximos da Pedroso, por exemplo, isso sem falar nos prédios da Monsenhor Passaláqua. Será que eles estariam incluídos nessa desapropriação? A única coisa que me incomoda é não saber qual o destino das pessoas que foram retiradas de lá. Isso sempre dá uma impressão higienista, mesmo que não seja verdadeira. Mas concordo com você que esse centro cultural, se finalmente sair do papel, deverá dar alternativas de lazer para quem mora ali, assim como mais segurança.
Olá Alexandre. Estou morando há cerca de três meses na rua Martiniano de Carvalho, na altura da rua Pedroso. Adorei conhecer a história e as transformações dessa rua ao longo dos anos por meio desse seu post antigo. Espero que a restauração da Vila Itororó dê certo e que o trânsito não piore muito com o novo empreendimento em frente ao posto. Muito obrigada pelo texto!
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Alexandre Giesbrecht nasceu em São Paulo, em abril de 1976, e mora no bairro do Bixiga. Publicitário formado pela Escola Superior de Propaganda e Marketing, é autor do livro São Paulo Campeão Brasileiro 1977 (edição do autor).