Pseudopapel

Esta vista vai acabar

Vista do terreno dos Matarazzo, na Água Branca

Em algum momento nos próximos anos esta vista será obstruída por torres de apartamentos, que serão construídas no antigo terreno dos Matarazzo, na Água Branca. O stand de vendas já está aí, e os apartamentos já estão sendo comercializados. Não sei qual a previsão de início das obras ou mesmo de entrega, mas acredito ser seguro afirmar que a foto que bati ontem já não será a mesma daqui a dois anos. Os prédios ali levantados inundarão as ruas adjacentes, já sobrecarregadas pelo Shopping Bourbon, pela ligação leste-oeste e, em dias de jogos, pelo Parque Antártica. A Operação Urbana Água Branca, a segunda mais antiga da cidade, criada há quinze anos, mas que só neste ano começou, timidamente, a sair do papel, prevê diversas obras para a região, mas, mesmo se acreditarmos que todas serão feitas, parece-me muito pouco para compensar as mudanças nas caracteríticas do bairro, como o aumento da população de trinta mil para 150 mil, segundo a associação Amigos do Bairro da Barra Funda.

A região já mudou bastante nas duas últimas décadas e meia, com a construção do Terminal Intermodal Barra Funda, do Memorial da América Latina e de um conjunto de prédios comerciais em frente ao Shopping West Plaza, a criação do corredor de ônibus São João–Lapa–Pirituba, a extensão da Rua Auro Soares de Moura Andrade e a demolição de algumas casas próximas ao Estádio Palestra Itália para a polêmica ampliação do local. O trânsito nas avenidas Pompeia e Francisco Matarazzo e nas ruas Turiaçú, Clélia e Guaicurus segue um inferno nos horários de pico (na foto abaixo, respectivamente a Avenida Pompeia, a Rua Clélia e a Rua Carlos Vicari, que pouco à frente muda de nome para Guaicurus). Nenhuma das contrapartidas que a prefeitura promete parece sequer resolver o problema do tamanho que está; imagine quando a população da região quintuplicar.

Ruas Clélia e Carlos Vicari, na Pompeia

Meu pai escreveu ontem em seu blog um longo texto sobre esse assunto. Embora o exemplo que abra suas considerações seja o da Avenida Engenheiro Luís Carlos Berrini, ele obviamente se aplica na Água Branca e em inúmeras outras localidade de São Paulo — e de outras cidades também. Não sou tão radicalemente contra novos empreendimentos como ele, mas acho que tem havido um abuso incomensurável nos últimos quarenta anos, pelo menos. Acho que mesmo hoje em dia certos empreendimentos têm potencial para recuperar áreas degradadas ou impedir que outras se degradem. Não é o caso da Água Branca, um bairro que já se valorizou há um bom tempo e que não corre nenhum risco de ver tal valorização evaporar. Pelo contrário: neste instante parece estar correndo o risco de a qualidade de vida dos moradores da região evaporar.

Até a segunda metade da década de 1980 a região da Água Branca próxima às linhas 7 e 8 da CPTM quase não tinha prédios, embora também não tivesse muito o que oferecer em termos de habitação, a não ser pela Vila dos Ferroviários, próxima a onde hoje está o Terminal Barra Funda. O bairro tinha características industriais, que começaram a mudar quando uma das partes mais importantes de sua história foi demolida, em agosto de 1986: os 25 prédios da fábrica Matarazzo, cuja derrubada foi justamente quando se discutia o tombamento das instalações, construídas na primeira metade do século XX. Funcionando até poucos dias antes para a fabricação de produtos anacrônicos como velas e sabão em pedra, as Indústrias Reunidas Francisco Matarazzo decidiram acabar com tudo em apenas algumas horas e ignoraram a sua própria memória, de quando eram conhecidas como “o segundo maior estado do Brasil”, com faturamento inferior apenas ao de São Paulo. A própria vizinhança comemorou o fato, pois não teria de se preocupar mais com o barulho e a fumaça produzidos pela fábrica.

Dela sobraram apenas alguns pequenos prédios e três chaminés, surpreendentemente ainda de pé, como mostra a foto abaixo. Como o que sobrou está tombado pelo Condephaat desde aquela época, espera-se que os novos prédios integrem essa memória a seu projeto e mantenham-na aberta ao público, algo que não será fácil, dados os inúmeros problemas de segurança que isso implica: é mais fácil simplesmente murar em volta. Vale lembrar que o projeto para o terreno dos Matarazzo originalmente era construir, além das torres de escritórios, “um shopping gigante”, segundo reportagem da revista Veja em São Paulo de 25 de novembro de 1987.

Chaminés no terreno dos Matarazzo

Parêntese: Talvez não por coincidência, outra reportagem da revista naquele ano, em maio, tratava do terreno em Cerqueira César onde hoje está o Renaissance São Paulo Hotel e avisava que a Encol pretendia erguer ali “o maior shopping center da cidade”. Foi nos anos 1980 que foi construído o Center Norte, então (ainda?) o maior da cidade, por isso não é estranho que todas. Fim do parêntese.

Já naquela época o pensamento era parecido com o atual: levantar prédios, prédios e mais prédios. A verticalização do bairro, que começara graças à chegada do metrô — a Fepasa e a CBTU, hoje unidas na CPTM, já tinham estações de trem na região —, era aplaudida. A reportagem da Vejinha fala em “expulsar as indústrias e colocar, em seu lugar, grandes prédios de apartamento”, o que, segundo ela, “tiraria também a poluição do bairro, e ele se transformaria numa boa opção para a classe média”. Tiraria mesmo a poluição, com tantos polos geradores de tráfego por ali? Hoje em dia não se pensa mais assim. Mas segue-se pensando assim em termos de quantidade de empreendimentos. Quantos seriam suficientes para revitalizar uma região como a Água Branca 23 anos atrás? Meia dúzia? Uma dezena? Talvez um pouco mais? Só na área de dois quarteirões entre a Avenida Santa Marina e o Viaduto Pompeia foram cerca de dez lançamentos nos últimos anos.

Os vizinhos que em 1987 saudavam a demolição hoje não devem estar muito felizes, já que o barulho e fumaça agora vêm das ruas e avenidas, lotadas em grande parte por carros que lá não estariam se não fosse o boom imobiliário que assolou a Água Branca desde aquela época. E isso porque boa parte do terreno da IRFM ainda está vazia; daqui a uns dois anos a situação será ainda pior. E há potencial para maiores estragos. O terreno da Telefónica, localizado diametralmente do outro lado do Viaduto Pompeia, ainda está lá, esperando algum projeto mirabolante, como se vê no alto à esquerda da foto abaixo.

Viaduto Pompeia e terreno da Telefónica

Atualização (19/6/2011, 19h50): A foto abaixo foi tirada ontem, com um celular, e mostra as obras iniciadas. A vista não tem mais muitas semanas de vida, não.

Obras no terreno das antigas Indústrias Matarazzo

3 comentários

Ralph Giesbrecht (42)

Mais um desastre para São Paulo. Nós ficamos só olhando. Vamos dar uma de Greenpeace? Amarrar-nos nas árvores por ali? Ou pendurar cartazes para sobreviverem ali por 20 anos escritos: “eu não disse”?

15 de novembro de 2010, 16:27

gilberto maluf (66)

Alexandre, lembro-me de ir com minha mãe no começo dos anos 60 de bonde aberto para a Lapa e ele margeava as IRFM, Industrias Reunidas Francisco Matarazzo na Agua Branca e lembro-me bem de suas chaminés. Jose Goldemberg escreveu que o bairro da Lapa ,há cem anos, era pontilhado de chaminés das Indústrias Matarazzo (e outras). Hoje desapareceram dando lugar a varios empreendimentos.
Quanto aos Matarazzos suas chaminés fumegantes devem fazer parte da história.
Estou na Rio há 6 anos e quando venho a São Paulo fico impressionado com a imensa quantidade de prédios novos. As ruas continuam as mesmas, certo?
abs

15 de novembro de 2010, 16:57

Alexandre Giesbrecht

Em seis anos já deve haver algumas ruas novas, e não sei se são tão poucas assim. hehehehe Aliás, na Operação Urbana Água Branca prevê-se algumas ruas novas por ali, como um retorno sob o Viaduto Pompeia para quem vem da avenida de mesmo nome e uma ligação entre as ruas Auro Soares de Moura Andrade e Tajipuru, que não sei bem onde ficaria/ficará.

15 de novembro de 2010, 17:03

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Alexandre Giesbrecht nasceu em São Paulo, em abril de 1976, e mora no bairro do Bixiga. Publicitário formado pela Escola Superior de Propaganda e Marketing, é autor do livro São Paulo Campeão Brasileiro 1977 (edição do autor).

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