Pseudopapel

O Buraco do Sobrinho

Buraco do Sobrinho em 1980, na Nove de Julho

Adhemar de Barros foi prefeito de São Paulo, interventor federal em São Paulo e duas vezes governador do estado. Durante seu único mandato na prefeitura, entre 1957 e 1961, construiu o que ficaria conhecido como Buraco do Ademar, túnel no Vale do Anhangabaú que passava sob a Avenida São João e mais tarde foi substituído pelos túneis atuais. Seu sobrinho, Reynaldo de Barros, também foi prefeiro paulistano duas décadas mais tarde, tendo sido nomeado pelo então governador Paulo Maluf em 12 de julho de 1979, mandato que não chegaria a cumprir, pois desencompatibilizou-se do cargo em 14 de maio de 1982 para concorrer ao governo do estado. Acabou derrotado por Franco Montoro. Durante o tempo que esteve à frente da prefeitura, também lidou com um buraco, que à época ficou conhecido como “Buraco do Sobrinho”, em referência ao Buraco do Ademar.

Apesar de o buraco ter sido aberto, involuntariamente, em 1980, sua história começou 44 anos antes, em 1936, quando as tubulações da Avenida Nove de Julho foram implantadas no Centro, a seis metros de profundidade. Elas tinham cerca de 1,70 metro de diâmetro e foram construídas em concreto armado e tijolos, para recolher águas pluviais próximo à Praça 14-Bis e despejá-las em uma outra tubulação no Vale do Anhangabaú — de lá, as águas seguiam para o Rio Tamanduateí. Em 14 de fevereiro de 1980 chuvas na região da Consolação abriram um grande buraco no sentido Centro da Nove de Julho, ocupando as três pistas da avenida na altura da Rua Avanhandava. A pista foi restaurada, mas nove dias depois o Tamanduateí transbordou da Vila Prudente ao Cambuci, e a jusante dali não conseguiu absorver as águas que vinham do Anhangabaú. Para piorar, próximo ao ponto onde a Nove de Julho e a Rua Avanhandava se encontram, uma galeria com águas vindas da Rua Augusta desembocava na mesma tubulação sob a Nove de Julho, que não aguentou o volume de água que chegava em grande velocidade e não tinha onde desaguar, rompendo-se. A pista afundou de novo, praticamente no mesmo local da semana anterior.

“Por ser antiga, [a galeria] é insuficiente, e o volume de águas deve ter criado pressões internas não previstas no projeto”, explicou ao Jornal da Tarde Octávio Camillo Pereira de Almeida, secretário de Vias Públicas. “Uma razão para já terem ocorrido dois ou três rompimentos naquele ponto, sempre reparados, mas nunca de forma definitiva, devido ao tempo que a obra demanda. A inconveniência de se impedir o trânsito na Nove de Julho nos levava a fechar rapidamente os buracos.” Desta vez não havia solução rápida. A previsão inicial era de que fossem necessário um mês de interdição para a reconstrução da galeria. Nos primeiros dias a atenção foi dada aos 48 metros afetados para oferecer segurança aos trabalhos de reconstrução. Essa fase exigiu trabalhos inclusive à noite. “Esta é a medida de maior urgência e deverá estar concluída até amanhã”, avaliou Octávio Camilo, referindo-se à terça-feira 26, três dias após o rompimento da tubulação. “Daí nós termos pedido para a empreiteira trabalhar inclusive durante a noite, apesar do barulho do bate-estacas.” Só a partir de então a reforma começaria, numa profundidade de oito metros. As novas tubulações seriam metálicas, com 2,80 metros de diâmetro. A escolha do material foi feita pois com ele seria possível realizar o trabalho mesmo durante a época de chuvas, com água correndo.

Com as três pistas no sentido Centro totalmente interditadas, a Nove de Julho transformou-se em um grande problema de trânsito, apesar da intervenção do Departamento de Operações do Sistema Viário, que implantou diversas medidas para aliviar o trânsito. Nos horários de pico, apenas os ônibus podiam seguir pela avenida após a Praça 14-Bis; os automóveis passaram a ser desviados nesses períodos para a Rua Manoel Dutra. Ao chegar à altura da Rua Avanhandava, os ônibus seguiam para uma das pistas no sentido Bairro, por onde trafegavam por cerca de duzentos metros. Além disso, os carros que vinham pelas quatro principais vias que cruzam a Nove de Julho ao longo de sua extensão (Rua Groenlândia, Avenida Brasil, Rua José Maria Lisboa e Alameda Lorena) eram impedidos de entrar na avenida. “Eles só poderão cruzar a Nove de Julho”, decretou Roberto Scaringella, diretor do Departamento de Operações do Sistema Viário (DSV). “Dessa maneira, reduziremos o volume de veículos na pista Bairro–Centro, pois esses cruzamentos são os pontos mais importantes de injeção de carros no corredor.” Enquanto isso, dez postos espalhados pela cidade distribuíam folhetos explicativos.

Naquela época, passavam cerca de cinco mil veículos por hora em ambos os sentidos da avenida. Se com apenas uma das pistas a situação já era complicada, sem ambas as pistas haveria o caos. Em 20 de março, a três dias de a cratera, já popularizada como “Buraco do Sobrinho”, completar um mês, uma trinca apareceu no asfalto da pista no sentido Bairro. Em seguida as estacas do canteiro da vala começaram a se mexer, e a terra deslizou, abrindo um novo rombo, desta vez interditando todas as faixas do sentido Bairro. “A vala para reparos da galeria danificada foi aberta dentro do mais alto nível técnico”, contou o prefeito. Havia dois possíveis motivos: uma pressão maior que a calculada, que teria provocado um deslizamento por baixo das estacas, ou um bolsão de ar sob a pista. No dia seguinte o cenário era desolador, com fortes chuvas transformando as duas crateras em cachoeiras, muita lama por todos os lados e trincas que pareciam brotar de esporos. As chuvas que caíram ao longo do dia ainda serviram para aumentar a largura das fendas. Nas bancas, o JT estampava em sua última página: “Atenção, motoristas. Esqueçam que a cidade tem uma avenida chamada Nove de Julho.”

Antes de o novo buraco surgir, nada sugeria que tal desdobramento estivesse próximo. Da mesma maneira, antes do primeiro buraco o local estava longe de ser prioridade, a não ser quando reparos paliativos eram necessários. “O projeto hidráulico já existe há cinco anos, o que mostra que há tempos o pessoal estava preocupado com esta galeria”, afirmou o prefeito Reynaldo de Barros quando ainda se preocupava com apenas uma cratera. “Só que até agora não fizeram um trabalho definitivo. O governador [Maluf] lembrou que no seu tempo à frente da prefeitura [entre 1969 e 1971] já tivera problemas com esse buraco. Não posso dizer que os outros administradores estivessem errados. Se eu também visse um buraquinho não iria fazer uma obra dessas. A bomba estourou na minha mão.”

Estourou na mão dele, e duas vezes. As novas previsões davam conta de oito dias apenas para chegar ao ponto onde as obras estavam antes do segundo afundamento, mas àquela altura os técnicos sequer tinham certeza de qual seria o melhor método para resolver o problema. Depois de diversas reuniões, o prefeito anunciou que seria feito o aterro total dos dois buracos, com a galeria sendo reconstruída atráves de um túnel subterrâneo. No dia seguinte, um sábado, as empreiteiras contratadas aproveitaram-se do tempo bom e, depois de colocar pedras no fundo da cratera, aceleraram os trabalhos e conseguiram terminar o serviço de canalização do primeiro trecho da galeria. Foram necessários cerca de oitocentos metros cúbicos de terra para fechar o buraco, mas o terrível prognóstico que se anunciava na sexta-feira foi revertido já no dia seguinte.

Ainda faltava a reconstrução da galeria — a promessa era de estender a reforma da Praça 14-Bis às galerias que levavam as águas ao Rio Tamanduateí —, mas o trânsito poderia ser liberado já na segunda-feira. “Ganhamos a guerra”, comemorou Reynaldo. “Engenheiro é assim mesmo. O pessoal veio aqui, analisou, viu que dava, que o tempo estava bom e tocou o serviço. Deu certo. Não considero que houve indisciplina da empreiteira, voltando atrás na minha decisão. Se eles fizeram o trabalho, é porque havia condições.” De fato, o trânsito voltou a correr no sentido Bairro naquela segunda-feira, encerrando em apenas três dias um capítulo negro que prometia se estender por semanas. Os comerciantes, que já tinham perdido movimento quando o primeiro buraco apareceu, comemoraram, pois o segundo tinha afastado de vez a clientela.

O “Buraco do Sobrinho” começava a ser tapado, tal como ocorreria na segunda metade daquela década de 1980 com o Buraco do Adhemar. Ao contrário deste, o “Buraco do Sobrinho” não resistiu na memória da população. Uma busca no Google por “buraco do sobrinho” retorna hoje apenas seis resultados, todos referentes a um buraco na cidade de Porto Velho, em Rondônia, muito menor que o “original”. Na foto abaixo, o local onde trinta anos atrás localizou-se o “Buraco do Sobrinho”.

Local do "Buraco do Sobrinho" hoje

3 comentários

Ralph Giesbrecht (42)

Quando uma galeria é feita no lugar de um córrego que já existia (no caso, o Saracura) o cálculo de volume de água é sempre um problema. Quanto ao buraco do Adhemar, tem certeza que é de 1957? Eu sempre achei que era do tempo em que ele foi governador, no final dos anos 1940. Cheque isso…

5 de dezembro de 2010, 10:54

gilberto maluf (66)

Em 1977, durante as obras da estação Anhangabaú do Metrô, vi as antigas galerias que vinham da avenida 9 de julho, e na altura do Vale do Anhangabaú, dava para um homem andar dentro da galeria, que era quadrada ou levemente retangular. Para alguns serviços necessários o empregado usava uma bota até o joelho, ou até quase a barriga se fosse necessário.
Lembro-me bem do problema ocorrido da cratera e se não me engano, a Camargo Corrêa foi chamada às pressas. Afinal, ela estava logo ao lado nas obras da estação Anhangabaú.
Tentei ver a data da construção do buraco do Adhemar e pela pressa não consegui. Mas vi inúmeras obras que o Adhemar de Barros fez. O slogan ” Rouba mas faz ” deve estar correto porque fez muitas obras, rs.
abs

5 de dezembro de 2010, 12:37

Alexandre Giesbrecht

A informação do Burado do Adhemar como tendo sido na gestão deste na prefeitura veio do verbete sobre o ex-prefeito na Wikipédia. Eu tinha tentado buscar uma data exata, mas as buscas no Google foram infrutíferas. Muitas fotos, mas nenhuma informação exata. Até acho que foi antes, mas não tenho informação para confirmar.

5 de dezembro de 2010, 12:59

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Alexandre Giesbrecht nasceu em São Paulo, em abril de 1976, e mora no bairro do Bixiga. Publicitário formado pela Escola Superior de Propaganda e Marketing, é autor do livro São Paulo Campeão Brasileiro 1977 (edição do autor).

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