Pseudopapel

Arbitragem eletrônica

Montagem de Alexandre Giesbrecht sobre foto de Davide Guglielmo/Stock.Xchng

Nos últimos anos as maiores discussões de futebol têm sido em torno de erros ou supostos erros de arbitragem, especialmente aqui no Brasil, uma tendência acelerada pelo anonimato nas discussões de fóruns e nos comentários em blogs de jornalistas esportivos de expressão. Todo mundo acha que seu time só perdeu porque o juiz errou — ou melhor, roubou —, o que me faz pensar que esse povo talvez imagine que, num irreal mundo de arbitragens perfeitas, seus times ganhariam todos os jogos, sendo, pois, campeões de tudo o que disputam.

Talvez para ser diferente de tudo isso, eu nunca reclamo quando os árbitros erram contra o meu time: eu sempre me lembro que eles às vezes erram a favor. No mundo das discussões acéfalas, o erro a favor seria uma suposta compensação por “todas as outras vezes” em que o time foi roubado. Não quero entrar numa análise pseudopsicológica disso. Seria algo entre a natureza do ser humano e o eterno nós-contra-eles que tanto satisfaz certas almas diante de resultados negativos.

A minha intenção é imaginar o que alimentaria tais discussões se a chamada arbitragem eletrônica entrasse em cena no futebol. É uma hipótese extremamente remota — acho que seria mais fácil eu conseguir eleger o porteiro do meu prédio presidente nas eleições de outubro, e no primeiro turno —, mas que sempre é levantada pela imprensa depois de algum erro grave. Não dá sequer para comparar com as ligas norte-americanas que têm algum tipo de arbitragem eletrônica, pois tanto no hóquei no gelo como no beisebol e no futebol americano os árbitros só podem apelar para os replays em alguns casos bem definidos.

Ontem mesmo, na liga de beisebol, um erro crucial criou uma polêmica que pode fazer com que a arbitragem eletrônica no esporte seja estendida além de apenas verificar se home runs foram corretamente anotados. Armando Galarraga, arremessador venezuelano do Detroit Tigers precisava de apenas uma eliminação para conseguir um jogo perfeito. O feito, que consiste em eliminar todos os rebatedores adversários, é tão raro que apenas vinte arremessadores conseguiram-no em toda a história do beisebol — apesar de dois deles terem conseguido nesta temporada, algo que não acontecia desde 1880.

No que deveria ter sido seu último arremesso, o interbases Jason Donald, do Cleveland Tigers, rebateu a bola na direção de Miguel Cabrera, que a recolheu e passou para Galarraga, que cobria a primeira base. O arremessador pisou na base com a bola pelo menos um passo antes de Donald, mas o árbitro da primeira base, Jim Joyce, assinalou que o jogador estava salvo. O jogo perfeito tinha ido para as cucuias. E não só o jogo perfeito, como algumas marcas relacionadas: teria sido o menor número de arremessos em um jogo perfeito desde 1908 e o jogo perfeito mais curto desde 1965.

Talvez o mais impressionante nessa história toda tenha sido o fato de o juiz que errou ter assumido seu erro, pedindo desculpas a Galarraga pessoalmente. E ele não se limitou a pedir desculpas privadamente; em entrevista após ver o replay e perceber o que tinha feito, ele reconheceu que errou. Algo inimaginável no futebol, especialmente no futebol brasileiro, onde os árbitros ficam incomunicáveis, mesmo para a imprensa, após os jogos, especialmente quando houve algum erro clamoroso.

O próprio Galarraga comportou-se como um cavalheiro. Ao invés de espernear, xingar e amaldiçoar, não, ele simplesmente sorriu, com um ar de incredulidade, logo após o lance. Seus companheiros de time e seu técnico reclamaram. Ele seguiu em frente e eliminou mais um adversário, encerrando definitivamente a partida. Mesmo depois do jogo, quando já tinha a mais absoluta das certezas de que ele deveria àquela altura estar com um jogo perfeito no currículo, ele teve uma atitude ímpar. Ao saber, por meio de um repórter do jornal Detroit Free Press, que Joyce tinha assumido o erro e estava se sentindo péssimo, sua resposta veio com classe.

“Diga a ele que não tem problema”, disse Galarraga. “Eu posso ir dizer a ele.” Ele sorriu. “Eu provavelmente deveria falar com ele. Vai ser melhor.” E foi o que ele fez.

Michael Rosenberg, Detroit Free Press, 3/6/2010

Nesta manhã, foi o grande assunto do noticiário esportivo norte-americano. Houve quem aplaudisse de pé as atitudes de Galarraga e Joyce, quem defendesse a mudança do resultado (algo que mais tarde seria rejeitado oficialmente pela liga) e muitos que voltaram a tocar no assunto da arbitragem eletrônica estendida a outras situações, o que a liga disse que estudará.

No futebol, não existe sequer essa discussão por parte de quem decide, apenas por parte da imprensa. Quem decide é a International Board, que mexeu em pouquíssimas regras do esporte ao longo do último século. Não que isso seja um problema; ficar mudando tudo a toda hora seria péssimo. Mas já faz algum tempo que está na hora de mexer nessa regra que faz crer que a Fifa ainda acredita em infalibilidade dos árbitros. Eles falham, e falham muito, e todos os jogos, até os da segunda divisão nacional, já têm várias câmeras espalhadas pelo estádio, o que é facilmente comprovado pelo pay-per-view quase onipresente.

Falando só no Brasil, provavelmente não seria possível adotar essa solução em todos os campeonatos, como alguns estaduais menores e as divisões inferiores. Mas isso já poderia ajudar bastante justamente nos torneios de maior visibilidade. Sei que nada disso vai acontecer. A Fifa vira-e-mexe dá declarações dizendo que não gostaria de eliminar a polêmica do futebol, como se esse fosse um grande argumento contra a arbitragem eletrônica. Será que não seria melhor as discussões na segunda-feira serem sobre os lances bonitos da rodada, em vez das falhas de arbitragem?

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Quem?

Alexandre Giesbrecht nasceu em São Paulo, em abril de 1976, e mora no bairro do Bixiga. Publicitário formado pela Escola Superior de Propaganda e Marketing, é autor do livro São Paulo Campeão Brasileiro 1977 (edição do autor).

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